ready-made utopiense

Para prevenir tais inconvenientes, os utopienses imaginaram um meio coerente com suas instituições, e inteiramente distante das nossas - nós, que tanto valorizamos o ouro e com tanta diligência o guardamos -, um meio em que apenas os experientes podem crer. Pois os utopienses comem e bebem em utensílios de barro ou vidro, elegantíssimos, embora bem baratos. Já de ouro e prata eles fazem urinóis e todos os vasos mais vis, não apenas dos palácios públicos, mas também das casas privadas. E ainda fabricam, dos mesmos metais, as correntes e os pesados grilhões com que são presos escravos. Finalmente, todos aqueles que o crime tornou infames carregam brincos de ouro nas orelhas, têm anéis de ouro nos dedos, põem no pescoço correntes de ouro, e até mesmo cingem de ouro a cabeça. Os utopienses cuidam, assim, por todos os meios, que seja uma verdadeira ignomínia portar qualquer peça de ouro ou prata. Por tal motivo, esses metais, cuja perda os outros povos temem mais do que a perda das próprias vísceras, junto aos utopienses, quando se torna necessário que os entreguem, ninguém parece haver perdido sequer um único centavo.
— Thomas More (1516/2017, p.123)

E de pensar que, talvez, Duchamp jamais tenha imaginado seu ready-made, de porcelana, valendo mais que ouro. Vai dando para entender por que virou mestre enxadrista (esporte favorito dos utopienses) e abandonou o trade das artes. 

cambiarse

"Personalmente pienso que “cambiarse” es contribuir a cambiar el orden del mundo."

Muito boa entrevista com Michel Onfray, na Eñe

a diferença é uma utopia

Ora, se em tal reunião, onde se desprezam as opiniões alheias, ou só as opiniões próprias são consideradas as melhores, alguém descrever os fatos que leu sobre outros tempos, ou o que viu ocorrerem noutros lugares, ali, aqueles que o ouvem comportam-se exatamente como se a reputação de sua sabedoria estivesse em risco, e eles, assim, pudessem ser considerados completos estultos, a não ser que encontrem algo que deprecie as invenções alheias, ou lhes aponte vícios. E se tudo mais falhar, eles se refugiam no seguinte argumento: ‘Assim aprovavam nossos antepassados, aos quais, tomara, nos igualaremos em prudência’; e, falando dessa maneira, como se houvessem discursado egregiamente, voltam a se sentar. Fazem como se fosse um grande perigo alguém ser considerado mais douto em qualquer assunto do que os antepassados.
— Thomas More (1516/2017, p.39)

art as bio

When you work with museums as we know them, they are made to keep dead things as dead as possible for as long as possible. What does it mean to put living things in this context? And how problematic it is to put a piece of life as an art object in this context?
— Oron Catts - http://eejournal.no/home/2017/5/11/oron-catts-on-future-of-arts

a sociedade da fajutagem

As culturas que conheci de perto têm indisfarçável fascínio pelo falso, pela farsa, pela habilidade de fazer passar por fato o que é fingimento, ficção. Poucas vezes, pelo menos que me lembre, pensei o Brasil tão dentro desses moldes, tão talhado na mentira. O próprio excitamento diante do marketing da "pós-verdade", a proliferação de artigos acadêmicos com o tema, parece traduzir o derrame generalizado de certo bálsamo encantatório sobre a capacidade do país em distinguir uma intenção honesta. Estamos mergulhados no truque, seja no estado, no mercado ou na academia.

Por isso, acho, veio tão a calhar essa matéria que li, na Works that work, sobre o Recto, reduto da falsificação liberada em Manila, na Filipinas. Recomendada.

3 hipótesis

1. La comunicación cooperativa humana surgió por primera vez en la evolucón (y surge por primera vez en la ontogenia) con la forma de los gestos naturales y espontáneos de señalar y hacer mímica.
2. El soporte decisivo de la comunicación cooperativa humana es una infraestructura psicológica de intencionalidad compartida, que se originó evolutivamente para respaldar las actividades de colaboración, cuyos rasgos más importantes son los siguientes:
a) habilidades cognitivo-sociales para crear con otros intenciones conjuntas y generar atención conjunta (además de otras formas de terreno conceptual común) y
b) móviles (e incluso normas) prosociales que favorecen el compartir cosas con otros y ayudarlos.
3. La comunicación convencional, tal como se encarna en todos los lenguajes humanos, sólo es posible cuando los participantes tienen previamente a su disposición:
a) gestos naturales y una infraestructura de intencionalidad compartida vinculada con ellos y
b) habilidades para el aprendizaje cultural y la imitación, aptas para crear y transmitir convenciones comunicativas que se comprenden colectivamente.
— Michael Tomasello (2013)

o tribunal que faltou pro tribunal

Eu mesmo sempre me digo que faz mais sentido dedicar espaço a autores e livros nacionais pouco promovidos.

Acontece que sou muito fã da obra do Laub, tem tempo já. Primeiro, porque ele torneia o texto como poucos autores brasileiros contemporâneos, expandindo o vocabulário da fala prosaica sem cair em estruturas artificiais. É um prazer ler as tranças que faz com as palavras e os períodos, e observar a relevância que coloca sobre questões tão corriqueiras de uma era que é nossa. Em segundo lugar, porque Laub fala de tempos, lugares e personagens com quem, em diversas ocasiões, cultivo afinidades bastante pessoais. Ainda que não seja judeu e considere Diário da queda um romance tremendo, meu favorito permanece O segundo tempo, história da amizade entre irmãos, que, na vida do leitor, vaza para os amigos, e da dureza que é uma existência tão cheia de decepções. 

Por isso tudo, e também por Longe da água e por A maçã envenenada, é que me afasto da recomendação que mal fiz valer pra mim e escrevo essas poucas linhas sobre O tribunal da quinta-feira.

Mais uma vez, é o autor de texto sóbrio e acessível que, ao estilo dos capítulos curtos dos livros anteriores, apresenta a história do publicitário José Victor, de sua amizade com Walter, de sua separação de Teca e do caso com a redatora-júnior Dani. Todos personagens bem construídos, bem conduzidos por palavras e combinações precisas, felizes e que funcionam. 

O que não funciona tão bem, porém, e é provável que seja essa também uma das causas que pedem o post, é o arco geral do romance, o argumento maior que abriga os encontros e desencontros dos bons personagens. 

Laub decidiu falar do tribunal que são as redes sociais. Pra isso, acabou usando a mesma expressão, para a crítica do mesmo fenômeno, que nomeou o single com Tom Zé e convidados, em 2013. Até aí, bacana, originalidade não é condição de romance bom. O que, pra mim, faltou, porém, foi um tratamento menos previsível, talvez ainda mais provocativo e polêmico, para não chover no encharcado. 

Em alguns momentos, o autor Laub arrisca se confundir, pela cadência do próprio texto e pelo apagamento das marcas de José Victor, com as opiniões do próprio narrador (o publicitário conta a história em primeira pessoa). E esse risco, na minha modestíssima opinião, seria o trunfo maior que Laub não leva à última consequência. 

Ponho um exemplo: quando o narrador fala ironicamente da reação da diretora de RH da agência e, particularmente, das feministas de Facebook, diante do vazamento das mensagens "escrotas" que José Victor trocava com o amigo gay Walter sobre a redatora-júnior, ameaça cutucar uma ferida - a do ativismo de vitrine, a da militância da vaidade - que, provavelmente para evitar que ele mesmo - Laub e seu romance - caísse nas malhas do tribunal, sangra pouco demais. Mas era isso, principalmente isso, que faria do livro o livro especial que acaba não sendo.

Por isso, ao evitar o confronto com a histeria das redes, e do júri dos nossos prêmios literários esclarecidos - coisa que Scott, em seu O ano em que vivi de literatura, encarou bem mais de frente -, Laub deixa de atacar literariamente o cinismo a que nos vemos submetidos diariamente. Seria uma virada no próprio percurso do autor, que, por não acontecer, não faz de O tribunal um livro ruim, mas tampouco o leva para perto dos favoritos que citei lá pra cima. 

presentéritos

Olha, tinha tempo que não aparecia por aqui, pelo menos com um texto novo. Nesse intervalo, comecei e terminei diversas leituras, comecei e não terminei texto algum. Sobre muitas dessas páginas ainda falarei aqui, espero. Tem um livro de contos nacional, lindo, lindo, que merece um texto calmo, não necessariamente longo, mas dedicado. 

Aproveito o post para pensar, em voz alta, sobre a performance que estou preparando, com orientação do Artur Matuck. Aliás, quero escrever em breve sobre o Matuck, dos poucos e visceralmente sinceros outsiders que conheci até hoje. Outsider na academia, outsider nas instituições das artes, outsider na maneira de pensar, de organizar, de sugerir. Enfim, um sujeito que se move e move o mundo, pensando pelas beiradas, absolutamente convicto de que as beiradas ainda vão transbordar para o centro. Poderia ser utopia, mas é só, e muito, um tipo especial de descentramento, de crença num lugar à margem.

Enfim, estou experimentando com a palavra. A partir de um exercício de livre associação de texto, o texto - qualquer que seja - como rubrica de uma cena, pincei, de mim mesmo, a sequência "Futuro do presente, com presentes, é. Não será". Na época do exercício, dias antes, tinha ouvido aquela música tão simples e bonita do Pato Fu, "tempo amigo, seja legal, conto contigo, pela madrugada, só me derrube no final". Diria que a livre associação, nem tão livre, partiu daí, correu para algum lugar e deu aqui em mais uma reflexão sobre a aflição diante do tempo que passa, e nunca mais. 

Veio a vontade de cercar certa obsessão por administrar o futuro. Então, vieram as cartas. As cartas que tomam o futuro como se estivesse escrito - como estão escritas as notícias velhas, fatos ou versões, reais ou inventadas, impressas numa página de revista. E inevitável também a tentação diante da suspeita de que a gente está o tempo todo repetindo os medos, as esperanças e as tragédias que já foram. Porque o homem é só o homem, querendo ser sempre mais. 

Apresentei a performance no CAC, para o grupo que tem trabalhado junto, e boas adições apareceram para ampliar o interesse (e os modos de tratá-lo, representá-lo) que nasceu em mim, em algum dia entre março e abril de 2017. 

É para breve o convite que deixarei aqui aos curiosos. "Presentéritos" estará numa mostra que acontecerá no meio do ano. 

Sociofobia

Uma das partes boas de ler ensaios contemporâneos, sobre temas da contemporaneidade, diz respeito a certa aposta que essas leituras exigem de quem lê. Quer dizer, ao ouvir uma opinião, bem costurada e fundamentada, sobre questões nas quais nos vemos envolvidos diariamente, parece que nos sentimos obrigados a, a partir da nossa experiência imediata, dar nossa versão. 

Mais ou menos isso aconteceu comigo enquanto navegava as páginas de Sociofobia, do César Rendueles, editado no Brasil pelo selo Sesc. 

O livro propõe uma - entre tantas possíveis - reconstrução dos fundamentos das relações sociais diante da introdução de inovações tecnológicas, dos primórdios da Modernidade para cá. De que maneiras os homens trabalham por relacionar-se entre si, desde os tempos do mercantilismo desenfreado que entregará, no século XX, as teorias econômicas neoliberais, marcadas sempre, e profundamente, pela experiência da técnica nas diversas ondas da Revolução Industrial (rebatizada de acordo com a conveniência do momento)? Como essas transformações prévias nas relações entre os homens prepararam o terreno para a emergência das redes sociais digitais?

Rendueles basicamente aponta para uma trajetória do desmanche dos laços comunitários e sociais que, na sua visão, sobreviveram, como herança das sociedades primitivas, até a Idade Média. Do Renascimento em diante, a urgência pelo desenvolvimento técnico teria dissolvido gradativamente as bases de homens conectados a homens. E essa história da desconexão, em nome principalmente da produção de uma riqueza não mais compartilhada, é a história que, de acordo com o autor, recomenda prudência ante a celebração do mundo digital e do ciberutopismo.

Discutindo ricamente temas como direito autoral e as origens do copyleft, Rendueles desmistifica a rede livre e democrática, revelando bastidores de interesses privados e lógicas neoliberais. Mantendo sempre o cuidado de destacar as falhas da tradição de projetos "de esquerda", destacando a crítica à centralização totalitária das tentativas comunistas de coordenação social, o autor surpreende ao aproximar os mecanismos "procedimentais" por trás da ideologia do direito autorial livre da crença numa suposta autorregulamentação positiva do sistema de preços em economias neoliberais. 

O texto é claro e acessível, apesar de ser bastante denso em alguns momentos. De maneira clara, não tão parcial quanto se poderia imaginar, Rendueles escreve um ensaio que coincide com algumas desconfianças pessoais que tenho diante do oba-oba deslumbrado que ronda a febre de start-ups e a dita economia do compartilhamento. O cool manejado por indústrias responsáveis por cadeias de produção repletas de miséria requer dobrada atenção. 

Minha aposta: Rendueles parece ter razão.

revolução

Tentaremos provar aqui que todo o processo evolutivo ou difusor se inicia sob a forma de mudança institucional. Quer surja como invento quer seja difundido, um novo engenho técnico infiltra-se no sistema de comportamento organizado pré-existente e, aos poucos, transforma por completo essa instituição. Em termos de análise institucional, mostraremos que qualquer invento, revolução, mudança intelectual ou social ocorre apenas quando criadas novas necessidades; incorporam-se assim no processo cultural ou na instituição novos mecanismos relativos à técnica, ao conhecimento ou à crença.
— (MALINOWSKI, 1941, p.51)
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Mas o que você está sentindo?
Um vento que sopra à noite, Regina; parece um rabo de nuvem, o adeus de um foguete.