“Nós somos contra os fascistas de qualquer espécie e contra os bolchevistas de qualquer espécie. O que nessas realidades políticas houver de favorável ao homem biológico, consideramos bom. [...] Como a nossa atitude em face do Primado do Espiritual só pode ser desrespeitosa, a nossa atitude perante o marxismo sectário será também de combate. [...] Quanto a Marx, consideramo-lo um dos melhores “românticos da Antropofagia”. ”
Trabalho interessante do artista cearense Narcélio Grud. Meio herdeiro do Letrismo e dos situacionistas, fase curtição, bem no resgate do artista artesão que modela o mundo imediato, a partir de ideias "privadas", na expectativa de esculpir um mundo expandido.
Bacán!
Criar é criar a si mesmo
“Marx participa plenamente do desenvolvimento desse programa ao mostrar que a produção de bens materiais (a poiésis) e a produção de si mesmo através de práticas individuais (a práxis) se equivalem dentro do quadro geral da produção das condições de existência da coletividade. A arte moderna, e é essa sua principal virtude, nega-se a considerar o produto acabado e a vida a ser vivida como separados. Práxis igual a poiésis. Criar é criar a si mesmo. ”
Picabia. Galipette.
um fim
“Conceitos do bem e do mal são apenas meios para atingir um fim. ”
Formigueiro
“Os homens são de operação ou de manutenção. Operação e manutenção do formigueiro e das formigas. Se um operário, um comerciante ou um banqueiro são criaturas de operação, as que fazem os túneis para a circulação dos alimentos, dos objetos, dos veículos, dos papéis, do dinheiro e da merda, os médicos, por exemplo, são os encarregados da manutenção, do bom estado de saúde e da eficiência social das formigas obreiras.”
Linguagem dentro da linguagem
“O poeta consagra-e e consome-se, portanto, em definir e construir uma linguagem dentro da linguagem; e a sua operação longa, difícil, delicada, que exige as qualidades mais diversas do espírito e que nunca se acaba, da mesma forma como nunca é exatamente possível, tende a constituir o discurso de seu ser mais puro, mais poderoso e mais profundo em seus pensamentos, mais intenso em sua vida, mais elegante e mais feliz em suas palavras que qualquer pessoa real. Essas palavras extraordinárias são conhecidas e reconhecidas através do ritmo e das harmonias que as sustentam e que devem estar tão íntima e tão misteriosamente ligados à sua produção que o som e o sentido não possam mais separar-se, correspondendo-se infinitamente na memória. ”
Koyaanisqatsi na era da reprodutibilidade técnica
"A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica" é, provavelmente, um dos textos mais recomendados nos cursos de pós-graduação em Ciências Sociais e Humanas, no mundo ocidental.
O que poderia ser falta de criatividade, certo dirigismo, ou colonialismo cultural, é também, e cada vez mais, uma tremenda demonstração de como acontece de o mundo atravessar, com antecedência, o espírito de algumas pessoas. Em tempos de internet e mídias sociais digitais, os palpites de Benjamin vão se confirmando, se multiplicando, às toneladas.
O exemplo dessa semana é a versão que fizeram para o clássico de Godfrey Reggio, Koyaanisqatsi, exclusivamente a partir de fotos e clipes disponíveis em bancos de imagem. Batizado com o bem-humorado título Koyaanistocksi, o resultado me faz pensar na literatura de Kenneth Goldsmith, polêmica por citar, parafrasear e bricolar textos de terceiros. A criação, na era da reprodução técnica, teria caminhado - explicitamente - para a recriação, a cópia e o plágio.
...
Antônia e Felipe se sentaram na mesa mais ao fundo. Pediram dois rodízios. Antônia escolheu água mineral, sem gás, com muito gelo e limão. Felipe agradeceu. reforçando que não bebia durante as refeições.
- Anda tudo tão esquisito.
- Em que sentido?
- O nosso tempo, esse tempo, a cidade.
- Chato, né?
- ...
- É que seu final de ano foi muito conturbado.
Enquanto ouvia essas últimas palavras, tentando evitar o contato com dores tão recentes, Felipe desviou o olhar até a janela, estourada com a luz de um mês de abril excessivamente quente. Pouco antes, de manhã, estivera, acidentalmente, numa galeria, folheando livros, vendo-lendo-ouvindo um jeito ambiente de criar poemas com efeitos de pedal e guitarra. Aquilo tudo, numa espécie de liturgia compartilhada entre vinte pessoas, não mais; o silêncio de um encaixando na respiração do outro, e a distração sendo o verso da comoção de alguém; aqueles dedilhados derramando mundo, falando de coisas que só revelamos quando não há palavra; ah, a palavra, seguiu pensando Felipe, reparando num fio não domesticado na sobrancelha de Antônia; aqueles sons, aquela harmonia sintetizada com uma delicadeza tão compatível com o que entrega a natureza, e a inevitável careação com os cortes fundos que provavelmente ainda sangravam para dentro - caramba, Felipe teve a impressão de uma sombra grande na janela, um avião -; aquela manhã, toda ela, em cada detalhe, levantara, mas derrubara o dia, dando a dimensão da construção permanente da vida, bonito, mas tendo a saudade como fatura, meu Deus.
- Me perdi agora.
- Posso dar um gole?
- Cuidado para não impregnar o copo com cheiro de sashimi.
- Pode deixar. Mas vou desistir de tentar pedir um beijo.
- ...
A gramática, depois
E enquanto tocava aquela música, quando chegava o refrão, quando emendava palavra em palavra, que, sendo tão melodia, não deixava de ser significado, de ser sentido, sentida; era sempre o mesmo jeito de perceber que as coisas gritam de longe, porque passam, e o que chega é o eco, e eco é sempre triste, porque supõe uma curva no tempo, inevitavelmente descendente no final. O que pode ser isso que ganha forma numa música, sem deixar de ser etéreo, mas gatilho de tanta lembrança esfumaçada, carregada de matéria que foi? Aí André gritou:
- Vai, Luísa. Experimenta, Luísa. Vê se não acontece com você.
A melodia, primeiro. A gramática, depois.
Vinte e dois anos
Outro conto de Um céu diferente daquele de lá, para ouvir, no Bandcamp.
HO
“Cúmplice leitor, que este tapete trançado seja para você um tapete voador.”
Tiger Rag
“Uns trinta metros praia acima, num pavilhão aberto, uma orquestra de jazz tocava ferozmente ‘Tiger Rag’. A canção me lembrava de uma história de Ben Hetch sobre um antropólogo que buscava remotamente modos e costumes primitivos; mas, vejam só, depois de uma vida de cabelos grisalhos, e em sua própria cidade natal, o grande professor encontrou a música e dança tão exóticas quanto os requebros cerimoniais de qualquer clã antediluviano de selvagens de Fiji.”