"Deus vai te derrubar"

"Deus vai te derrubar" é um conto de Até de repente. Pra minha sorte, quando leu o texto, o Lucas Hirai teve vontade de clicar uma série a partir dali. Vou reunir o resultado no blog, com comentários meus, apontando rastros que, na minha imaginação, aproximam um do outro. 

Alguns posts repetem o que escrevi no Instagram. Outros acrescentam pontos, no melhor estilo app sem fio. 

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Em "Deus vai te derrubar", Estela, ajudada por sua enfermeira, faz um trabalho de fotomontagem motivado pelo Poetismo, "movimento" da vanguarda theca. Usa uma foto sua como barco para uma porção de fotos com Estelas menores. Um medo enorme de morrer afogada antes de alcançar a praia.

  

Looking up. Reading the Words

My Dear One! When you are lying in the grass, with your head thrown back, there is no one around you, and only the sound of the wind can be heard and you look up into the open sky—there, up above, is the blue sky and the clouds floating by—perhaps this is the very best thing that you have ever done or seen in your life.
— Ilya Kabakov
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Relâmpagos

Me lembro bem da primeira vez que tive contato com um livro, um romance, do Trueba. Era um período de problemas e crises ligeras, quando eu flutuava entre viagens utópicas e aulas boas, esquisitas, em Barcelona. Era o tempo em que eu tinha tempo de ir quase todos os dias à praia, no verão, para nadar crawl de ponta a ponta, desviando o olhar para a areia, de tanto em tanto, tratando de vigiar meus documentos e o dinheiro, enterrados sempre próximos, mas não embaixo, da minha camiseta. Penso e vejo o sol, de novo; as minhas escolhas por evitar as escadas automáticas, no metrô, ao longo do caminho - existia alguma disposição natural para tudo o que, inclusive preguiçosamente, sublinhasse a vontade de vida. 

É provável que justamente essa vontade tenha estimulado a leitura, entusiasmada, de Cuatro amigos, livro que peguei emprestado da minha irmã, por cima de um comentário ambíguo, porque fora um best seller na Espanha, com uma quantidade imensa e excessiva de gírias, explicou ela, que fazem o livro soar bobo e adolescente diversas vezes. Mas aí, acho agora, achei também enquanto eu lia, esfarelando o corpo molhado com os grãos de areia; aí, repito, ficava a isca que chegou em mim: eu era bobo e adolescente, sendo bobo e adolescente, crescendo e envelhecendo, bobo e - tivesse como - efervescente para sempre. 

Então li a história sobre os quatro amigos, como pausa entre leituras de Cortázar, Ramón Ribeyro, Echenique e Sábato, com uma urgência reveladora sobre as minhas bobeiras e, ao mesmo tempo, a minha profunda satisfação com a maneira como Trueba faz as saudades infiltrarem diálogos bestas, que não se repetem, nem depois, nem mais. E assim eu encontrava a saudade, saudade que sempre tive das coisas que dividi - e me dividiram entre pessoas de quem guardo as melhores lembranças, ainda que sejam as melhores por serem as únicas que eu pude ter. 

Trueba escreve sobre a amizade.

Foi diante desse pano de fundo que li, alguns anos mais tarde, o incomparável Saber perder, dos preferidos da vida jovem adulta que acolhe os últimos respiros do tudo ainda pode acontecer, caramba. E, página a página, selecionava trechos que postei num blog velho, com alguns poucos leitores fiéis pedindo indicação sobre fonte e tradução.

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Por isso, na semana passada, comprei a recém publicada versão nacional de Blitz, livro que estava separado na lista que precisava ir buscar, ou pedir para trazer da Espanha. É um romance curto, breve, numa edição gostosa de folhear, entre mancha, imagens e ilustrações. É a história de Beto, da separação de Beto durante a viagem para a final de um concurso de paisagismo, em Munique. O tempo é o tempo da crise sem fim da Espanha, do desencantamento com o projeto de uma Europa humana, forte e universal. Nada disso. Beto anda inseguro com os caminhos profissionais e desmonta ao ser trocado por um cantor uruguaio, ex-namorado de Marta, agora sua ex-namorada, tão linda, tão linda que nunca vi igual - lemos, quase no fim da trama, quando Beto e um arquiteto rival dividem a mesma fileira de poltronas no avião. 

Até o código da reserva do voo de volta lembrava que tudo andava mal: M4RTA.

No percurso do protagonista, despedaçado por uma vida treintañera que começa a apontar para a dispersão da esperança, fatal, Beto se envolve com uma das organizadoras da premiação, alemã, divorciada, podia ser a sua mãe. E, assim, apesar de a orelha destacar o tom tragicômico das piadas que atravessam os encontros entre quem existe no livro, o que fica, de novo, é o jeito doído que Trueba encontra para mostrar o bonito da vida acontecendo, e se despedindo, inevitavelmente. 

Sempre me lembro, continuei, de algo que ouvi acerca de Buñuel: ele falava que era ateu, que não acreditava em Deus, salvo no deus inventado pelos homens, na mentira que erguiam para se consolar.

Europe, she loves

Já há um tempo, tinha visto o trailer de Europe, she loves, filme do diretor suíço Jan Gassman. Pelo que tinha entendido, o filme confrontava a dureza de um continente em crise - econômica e todas as demais crises herdeiras, correlatas - com certa frieza no relacionamento entre gregos, espanhóis, estonianos, irlandeses. Europa ama, mas maltrata.

Vendo o filme, fiquei com a sensação de que, no fundo, os paralelos entre uma decadência financeira e a especulação sobre a falência do amor em tempos hipermodernos, construídos ao longo das revelações e conturbações sobre os relacionamentos dos pares dos diferentes países, são, na verdade, uma convocatória de esperança, mesmo que agonizante. 

É nesse sentido que a trilha do Library Tapes caiu lindo demais. 

todos os dias

Julia tinha certeza de que o mundo cabia no seu pensamento. Aí, vieram as dores de cabeça. A preocupação, o remédio, a falta de sono, a tristeza, a desesperança. E tudo o que ela sabia ficou pequeno demais para explicar a imensa falta que sentia, todos os dias. 

do mesmo lado

Tanta coisa acontece assim. É nessas horas que a gente percebe não ser tão diferente dos outros, ao menos não tanto quanto repetimos, em silêncio, olhando alguém a quem jamais desejaríamos bem. 

Vi Paula atravessando a rua, segurando o lenço amarelo enroscado no pescoço. Não consegui lembrar a cor da nossa roupa na última noite dela em São Paulo, dois anos antes. Ela não me viu. Entrou pela porta principal, viajou pelo salão, até eu acenar com a mão esquerda, movimento que confundiu o garçom. Pedi um beirute - para não ser indelicado com o rapaz, ganhei permissão para ser indelicado com ela.

- Você continua igual.
- Já achei que a gente mudava, que a gente continuava igual. Já achei isso tudo. Agora, não acho nada. Só sinto falta permanente de toda nossa impermanência, no que ela tem de igual e de diferente.
- Nossa, vamos começar assim?

Toquei a ponta do garfo sobre a mesa. Era uma maneira de sentir o avesso da minha pele, cada vez mais melancólica por dentro. Começava nas extremidades, corria não sei que caminho, mas cobria o corpo inteiro. Há pouco tempo, chegara à conclusão de que isso explicava a mania que eu tinha de roçar as pontas das unhas do indicador no contorno dos meus lábios. Muita gente dizia que era tique, mas me sentia tão consciente em relação ao gesto, que não casava com a definição que tinha para a palavra.

Paula havia viajado durante dois anos. Sempre me perguntei com que dinheiro. Trocamos alguns e-mails durante esse período. Paula tinha trabalhado numa granja no interior da Holanda. De lá, escreveu que o Alex, um de seus melhores amigos da adolescência, morrera, doente. Pensei em nós três, numa noite na Paulista, coincidindo no refrão de uma banda inglesa da qual perdemos as pistas. Esse tipo de derrota, a morte do amigo, a música que vai embora; esse tipo de perda, das pistas dos outros, que são pistas da gente, vai lentamente esvaziando o sentido dos acontecimentos que tantas vezes nos encheram de sentimento. 

- Qual é o plano?
- E tem plano? - respondi, depois de uma pausa relativamente longa, numa conversa de dois.
- Não tem, né? Tá tudo meio assim. De um lado, ficou todo mundo que eu não vejo mais. O Rodrigo casou, assinou carteira e ficou refém da mensalidade da escola. Ele, o Diou, a Camila, a Ju. E o Lucas? Não soube mais. 
- Do outro lado, estamos nós. 
- Será?
- Será o quê?
- Que ficamos do mesmo lado?
- A gente sempre soube, acho, e teve medo, lembra?, de perder a opção de ser sozinho.

em vias de acontecer

Não saberia dizer exatamente o que levou as pessoas, essas pessoas que mencionei, a pensar que, você, a dizer que eu, talvez, devesse, pudesse ter feito arte. E, ao dizerem isso, ao falarem em arte, no sentido mais burocrático da palavra, estavam justamente buscando dar conta de toda a ideia de liberdade que, ah, meu deus, a arte pode ter de bom. E foi assim: elas olharam no meu olho, de um jeito que eu evitava olhar, pra repetir "é seu olho, seu olho, o jeito de olhar". Num trem em Berlim, enquanto a gente voltava de algum lugar; na quadra de um prédio em São Paulo; por WhatsApp, três ou quatro frases de uma namorada que eu não soube ter. E um dia, andando no frio de uma avenida que já quis concentrar a história dos meus amigos todos, que na verdade foram poucos; saindo de uma cerveja, depois de conversar com um artista francês que perdeu maio de 68 por conta do fechamento dos aeroportos; senti aquele frio me desenhando por dentro da jaqueta; alguma parte da franja abrindo o meu caminho, as pessoas olhando com certa pena de mim, porque meu olho, o olho do olhar, estava embaçado por dentro, molhado pra quem via de fora. E eu fui pisando passos firmes, curtos, eu que sou de passos largos; fui deixando as luzes me tocarem, mais fundo do que jamais me deixei tocar por alguém - algumas imagens, na minha cabeça, colavam-se umas às outras, tratando de relacionar aquelas falas aparentemente perdidas e gratuitas com o meu presente, um presente que não apontava para um futuro certo e que, justamente por isso, acho, aguçava o gelado que dobra de força, em mim, quando antecipa o risco de alguma coisa em vias de acontecer. Estava me convencendo, convencido, deus meu - qualquer deus que queira e possa ser -, de que era aquilo, era que eu tinha nascido para viver aquilo que, quando olharam no meu olho, cintilante, acharam por bem chamar de artista.

nossa medida

Eu estava curtindo uma parada em São Paulo. Aqueles anos, aqueles dias. Nós, nós três, sentados numa mesa, detrás dum janelão, vitrine que dava para a Rua dos Pinheiros. Conversando sobre poucas coisas, tanta coisa por dizer, mas tanto desconforto por administrar; aprender que os esconderijos são contados e que é preciso saber economizar. O que guardar, o que dizer. Para perceber, mais tarde, que o que a gente guarda corre o risco de ficar sem explicação. Explicar pra quê, ué?

Estamos sentados, tomando alguma coisa. Provavelmente vodka - eles. Eu estou em algum número de copo de cerveja. Falamos que a música lá pra dentro poderia ser mais, e bonita. Sem saber falar com essas palavras, com esses nomes, intuímos que tudo merecia ser muito, ali, agora, porque não seria igual de novo, nunca - tentássemos, tentássemos, tentássemos. E tentamos, imaginem, tanto tempo mais tarde, também sem nos dar conta de que, no fundo, queríamos reeditar um punhado de sentimentos que fizeram da gente esse poço encantado, transbordado e vazio, vezes lá, vezes cá, sem planejamento. 

Formamos um triângulo sobre a mesa redonda. Um mapa vinciano. Nesse tempo da gente em que não é preciso fazer nada para ter certeza de que estamos fazendo, possivelmente, o mais visceral e poderoso da vida, que é existir com a certeza de que nossa existência importa a alguém. Podem ser poucos, mas são, e estão lá sedentos de pistas sobre o que podemos pensar e entregar a um mundo todo feito, ainda que por algumas dúzias de meses, na nossa medida. Tem uma idade em que é ruim demais ser o menor ou o mais alto da sala. 

É assim que sentimos aquele silêncio, tumultuado de fundo. Estudamos uns os outros, precisamente quando o outro não nos descobre estudando ninguém, você e eu. Imaginamos o acaso, ou o destino de estar juntos. De dar sentido a um espaço e um tempo que têm algum sentido por nos ter, assim, ao mesmo tempo. Tenho certeza de que Fernanda tem medo do perigo que pode ser um futuro, qualquer futuro, em vias de acontecer. Se o que acontece desacontece o melhor do acontecido?

Gustavo sopra o fundo do copo, sopra o fundo do copo, e sopra, do copo; o ar chega balançado até o meu lugar. Eu penso que jamais me flagraria, anos adiante, pensando naquele presente que, em mim e de muitas formas, rejeitou a condenação de consagrar a ideia de um trajeto linear, no qual o que veio antes não voltará em seguida, porque já foi.

"Vamos ser de novo?", interrompi, irrompi, entre os dois. Olharam-se antes de olhar pra mim. Acho que entenderam. Ou entenderiam que só a gente pode tapear o que está reservado pra gente, rompendo as palavras usadas para justificar o injustificável que é experimentar o fim das torres sem jamais olhar o mundo lá de cima. 

Vamos ser de novo, Fer e Gu? Se a gente for, ainda for, enquanto for, vamos tratar de ser essa espécie de novelo sem ponta, de rede sem centro, de bote sem rumo; não tem pra que chegar se o percurso é incontornavelmente pouco para revelar os motivos que demarcaram os lugares de saída.