Communitas ou o rock

Tinha 16 anos quando fui num show do Sonic Youth. Lá, sozinho, no meio de uma pequena multidão que eu não conhecia. Será que vai dar certo? Vão me machucar? Tinha 16 anos e não tinha ideia de como aquilo tudo teria a ver, algum dia, com a performance, com a arte, com a poesia.

Minha silhueta no show do El mató, 6/10/2022

Fui tímido. Era o moleque burguês tentando encontrar o moleque burguês fora do lugar. Fora de lugar. Entre uma distorção e outra, entre a frequência que eu percebia em slow motion nos corpos que me tocavam e o tempo do meu próprio corpo, numa energia não codificada, mais ou menos desconhecida, fui rastreando alguém, me reconhecendo num espaço que eu não tinha ainda. Mas teria.

O rock, era o pogo, ser essa ideia, caber em uma forma, conduíte, existir na experiência: isso que a gente chama de gente. Era saltar no tempo e estar com outras gentes, outros mundos, talvez outros monstros, e a mesma, a mesma, a mesma poesia.

Eu era performer quando dançava sozinho no quarto que dividia com meu irmão, quando ativava a função karaokê no microsystem Aiwa que me ajudou a imaginar uma banda, a antecipar os dias em que eu, num show de rock, finalmente pertenceria a um bando. No final, com ou sem bis, a gente debandava. E eu voltava feliz, sozinho de novo, pra casa. Logo depois de um show do Wedding Present, numa estação de metrô, um freak me abordou para dizer que tinha me visto enlouquecido na frente do palco. Você parece um cara divertido.

Fazendo aula de Antropologia da Performance, com o profe. John Dawsey, na FFLCH, precisei ler Turner. Descobri essa expressão chamada liminóide. E imediatamente me lembrei de Demian, do Hesse. Max ou Sinclair? Criei um email meiodemianmeiosinclair@yahoo.com.

Quando li o livro, também com 16 anos, escrevi um conto chamado “O antigo portão de casa”. Contava do meu medo durante uma reforma, quando a casa ficou guardada por um tapume, um madeirite fino e fraco. Estavam trocando o portão da entrada. O novo seria fechado com um chapa de ferro. Mas era o velho, vazado, que me protegia. Dentro, eu me sentia seguro, cuidado de tudo o que eu podia ser do lado de fora. Estar fora dá medo. Se aprende a baixar a guarda?

Estar fora, me ensinou Turner, era estar na margem. Quando, num ritual de passagem, as pessoas se afastam da vida comum, recebemos a licença de ser outra coisa. De experimentar o estado de gente diferente da gente que talvez fôssemos, se somos alguma vez, antes.

Eu estava na pista, flutuando em “Sugar Kane”, ombro no ombro, respirando os outros, olhos fechados. A vida, a vida, Rodrigo, é o tempo todo, as coisas todas, as pessoas todas: o risco de desmanchar o chão. E desmancha. Então, faz, inventa o plano para não cair. Faz, Rodrigo. Escreve, começa um site, publica resenha, publica zine, faz festa, faz show, trabalha, trabalha, ganha perde concorrência, entrevista gente, fotografa gente, coloca no insta, coloca no insta, coloca no insta, conversa com gente, conhece gente, come gente, viaja, viaja, viaja, caga, mija, goza, faz, Rodrigo, faz, inventa projeto, exposição, publica livro, lê, lê, mestrado, doutorado, corporação; dá aula, Rodrigo, conhece gente, chora com gente, ganha e perde gente, se droga com gente, bebe com gente, se afasta, se isola, se desintoxica, se entrega, ganha e perde, Rodrigo. Vai dar nada.

No empurra um o outro, na cotovelada, no abraço desprogramado, no hálito que chega perto, estamos lá prontos para não estar dentro nem fora; agora a gente admite outra presença enquanto a gente se ausenta do protocolo de nós mesmos. Vamos?

Communitas é esse estado de fraternidade, de irmandade; o mínimo denominador comum, que é o máximo, entre pessoas que, juntas, num espaço e num tempo de passagem, admitem a beleza nauseante de ser gente. Vou vomitar. Nesse intervalo, na ressimbolização de mim mesmo, na chance que me dou de outra experiência, a poesia. Quer ou dói demais pra você? Pode ou desaba? Tem mais ou vou deixar pra depois. Pra jamais.

Viva o rock, abaixo o parnasianismo.