Tinha um jeito que se repetia todas as manhãs. O fone no ouvido, a rota do ônibus. Se o assento estivesse livre, usava o mesmo. E olhava pela janela: a cidade na contracorrente. Era longe, tudo tão perto. O mundo lá na frente, a vida se desdobrando. Começando a conhecer e reconhecer algumas sensações que sentia, com menos medo, menos segredo. Tentava acomodar o pé na parte de trás do encosto em frente, sem incomodar a pessoa ao lado. Selecionava as faixas com o movimento das paisagens. No geral, eram todas suaves, esticadas, um pouco tristes. Às vezes, muito tristes. Buscou a mais doída na segunda-feira, porque o caminho de todos os dias, como os dias, mas de um jeito diferente, estava ficando pra trás. A viagem até o Parque Edu Chaves, ônibus, metrô, metrô, lotação, e tudo de novo, na volta, não aconteceria de novo. Sem ida, sem volta. O Promove, as aulas de energização, as aulas no laboratório com os computadores, o Nicolas, o Pedro Henrique, a Carina, a conversa sobre os banhos do dia, sobre um cinema na Paulista, os papéis higiênicos e o mármore na avenida central, a certeza de estar ali junto de uma molecadinha crescendo tão distante, de recriar o mundo, maior, ao lado da novidade que é o mundo o tempo todo; aquilo, com as sensações de ter chegado e ser recebido pela primeira vez, pra sempre a sensação da primeira vez, pra nunca mais, aquilo estava chegando ao fim. Enquanto escutava a música, tentando evitar que ela corresse demais pra dentro, atropelando a razão; enquanto refazia as palavras da sua mãe, na noite anterior, é uma escolha, Guilherme, é uma; enquanto testava a incerteza da decisão de ir embora, de sair da margem novamente em direção ao conforto dos que olham por cima, de cima, enquanto essas coisas tentavam se organizar na cabeça e no coração, ele navegava a música triste que colocara em loop, talvez para dar o tamanho da despedida, ou para marcar ela, com a dor que ela pedia, no corpo, e fazer dela o melhor elo para o dia da saudade.

finesse: promessa da eldorado

Desde o doutorado, voltei a ler mais sobre a história do Brasil. Particularmente, a história de São Paulo. Durante o percurso, me deparei, diversas vezes, com episódios em que colonizadores se beneficiavam da proximidade e de algum tipo de apadrinhamento com a coroa, portuguesa ou espanhola.

Sempre a mesma impressão de relações atabalhoadas, de puxa-saquismo, de vontade de poder e privilégio (que não tinham exatamente lá de onde partiram). O que começou com os primeiros capitães das naus que aportaram por aqui (Martim Afonso de Sousa, Pero Lopes de Sousa, Tomé de Sousa: os sobrenomes não são coincidência), e que emprestaram o título para os outros que, como eles, ganhariam lotes de terra no Brasa (“capitães hereditários”), explica demais o que ainda somos.

A chance de ser mais do que eu era, olha só. Promessa da mística Eldorado. De ser melhor e diferente por ser bruto encharcado de “riqueza”. Na carta de Pero Vaz ao rei D. Manuel, estrangeiros e nativos, logo nos primeiros contatos, se entendem em relação ao ouro: “Um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar. Como que nos dizia que havia em terra ouro”.

Em terra ouro. Essa é a história do Brasil. Fomos decepção por muito tempo. Batalhão de compadres saindo mata adentro para não encontrar o que faria deles melhores. Fracasso que faria deles brasileiros.

Essa sanha terrível por ser separado, por tomar o que não é nosso para nos diferenciar dos verdadeiros donos de quem roubamos a prata (nhé) e o ouro, é, pelo tanto que ainda ecoa, sempre perturbadora.

Venho olhando pra vida burocrática na tentativa de destacar, de maneira às vezes boba, o desespero pela diferenciação herdeiro de quem veio de longe para não se admitir daqui. O primeiro encontro dessa busca idiota, sem outro objetivo que não o de continuar criando para se explicar, me explicar, foi com a obsessão do meu entorno (de criança e de sempre) pela ideia e pelo projeto de “fino”. Depois que os portugueses falharam e faliram, fomos atrás do vaso de prata da família nos outros europeus.

“Finesse”, pelo Larousse.

Em que medida eu, quando uso uma expressão corriqueira, quando digo que quero alguma coisa acompanhada de algum adjetivo que procura disfarçar a coisa, continuo repetindo o naufrágio dos meus tataravós?

O pente fino, o açúcar refinado, a fina estampa, o instrumento afinado, a fina flor e os grã-finos atualizam todos os dias, em vão, mas todos os dias, a magia que projeta pra mim um mundo melhor que o dos outros.

Grãos-finos, Rodrigo Maceira (2023)

“Pente fino”, Rodrigo Maceira (2023)

“Fina flor”, Rodrigo Maceira (2023)

ChatGPT ensina o que é “fino” (21/1/2023)

Communitas ou o rock

Tinha 16 anos quando fui num show do Sonic Youth. Lá, sozinho, no meio de uma pequena multidão que eu não conhecia. Será que vai dar certo? Vão me machucar? Tinha 16 anos e não tinha ideia de como aquilo tudo teria a ver, algum dia, com a performance, com a arte, com a poesia.

Minha silhueta no show do El mató, 6/10/2022

Fui tímido. Era o moleque burguês tentando encontrar o moleque burguês fora do lugar. Fora de lugar. Entre uma distorção e outra, entre a frequência que eu percebia em slow motion nos corpos que me tocavam e o tempo do meu próprio corpo, numa energia não codificada, mais ou menos desconhecida, fui rastreando alguém, me reconhecendo num espaço que eu não tinha ainda. Mas teria.

O rock, era o pogo, ser essa ideia, caber em uma forma, conduíte, existir na experiência: isso que a gente chama de gente. Era saltar no tempo e estar com outras gentes, outros mundos, talvez outros monstros, e a mesma, a mesma, a mesma poesia.

Eu era performer quando dançava sozinho no quarto que dividia com meu irmão, quando ativava a função karaokê no microsystem Aiwa que me ajudou a imaginar uma banda, a antecipar os dias em que eu, num show de rock, finalmente pertenceria a um bando. No final, com ou sem bis, a gente debandava. E eu voltava feliz, sozinho de novo, pra casa. Logo depois de um show do Wedding Present, numa estação de metrô, um freak me abordou para dizer que tinha me visto enlouquecido na frente do palco. Você parece um cara divertido.

Fazendo aula de Antropologia da Performance, com o profe. John Dawsey, na FFLCH, precisei ler Turner. Descobri essa expressão chamada liminóide. E imediatamente me lembrei de Demian, do Hesse. Max ou Sinclair? Criei um email meiodemianmeiosinclair@yahoo.com.

Quando li o livro, também com 16 anos, escrevi um conto chamado “O antigo portão de casa”. Contava do meu medo durante uma reforma, quando a casa ficou guardada por um tapume, um madeirite fino e fraco. Estavam trocando o portão da entrada. O novo seria fechado com um chapa de ferro. Mas era o velho, vazado, que me protegia. Dentro, eu me sentia seguro, cuidado de tudo o que eu podia ser do lado de fora. Estar fora dá medo. Se aprende a baixar a guarda?

Estar fora, me ensinou Turner, era estar na margem. Quando, num ritual de passagem, as pessoas se afastam da vida comum, recebemos a licença de ser outra coisa. De experimentar o estado de gente diferente da gente que talvez fôssemos, se somos alguma vez, antes.

Eu estava na pista, flutuando em “Sugar Kane”, ombro no ombro, respirando os outros, olhos fechados. A vida, a vida, Rodrigo, é o tempo todo, as coisas todas, as pessoas todas: o risco de desmanchar o chão. E desmancha. Então, faz, inventa o plano para não cair. Faz, Rodrigo. Escreve, começa um site, publica resenha, publica zine, faz festa, faz show, trabalha, trabalha, ganha perde concorrência, entrevista gente, fotografa gente, coloca no insta, coloca no insta, coloca no insta, conversa com gente, conhece gente, come gente, viaja, viaja, viaja, caga, mija, goza, faz, Rodrigo, faz, inventa projeto, exposição, publica livro, lê, lê, mestrado, doutorado, corporação; dá aula, Rodrigo, conhece gente, chora com gente, ganha e perde gente, se droga com gente, bebe com gente, se afasta, se isola, se desintoxica, se entrega, ganha e perde, Rodrigo. Vai dar nada.

No empurra um o outro, na cotovelada, no abraço desprogramado, no hálito que chega perto, estamos lá prontos para não estar dentro nem fora; agora a gente admite outra presença enquanto a gente se ausenta do protocolo de nós mesmos. Vamos?

Communitas é esse estado de fraternidade, de irmandade; o mínimo denominador comum, que é o máximo, entre pessoas que, juntas, num espaço e num tempo de passagem, admitem a beleza nauseante de ser gente. Vou vomitar. Nesse intervalo, na ressimbolização de mim mesmo, na chance que me dou de outra experiência, a poesia. Quer ou dói demais pra você? Pode ou desaba? Tem mais ou vou deixar pra depois. Pra jamais.

Viva o rock, abaixo o parnasianismo.


metáfora

Por decirlo claramente, la ciencia posmoderna entiende ya que los procesos físicos no son lineales, es decir, que si junto A+B, no obtengo el sistema A+B sino A+B+?… Hay un excedente cualitativo, un término de interacción entre A y B que se nos escapa, un término que promociona esa suma a un lugar indeterminado e inaccesible en su totalidad, de tal manera que, como si de un sujeto autónomo se tratara, el sistema difiere de sí mismo. Y esto es, por decirlo aún más claramente, lo que entendemos por metáfora: la parte de la obra de arte que alude a algo que nunca termina de definirse: por eso la poesía carece de finalidad y fin. Clásicamente, la filosofía y la ciencia constituían un saber que se levantava sobre unos axiomas o dogmas que a su vez eran sus propios límites y, por su parte, la poesía, las artes, eran el saber que buscaba unos límites que ni poseía ni poseería jamás. Bien, todo eso ha terminado. Valgan las palabras del pensador y poeta H. M. Enzensberger, toda narración científica se fundamenta en el discurso metafórico. O las del físico Jorge Wagensberg cuando afirma que decir ciencia ficción es una redundancia porque toda ciencia es ficción.

FERNÁNDEZ MALLO, 2009, p.21-22

por um triz, ano novo

vai ter um tempo
pra vc, pra gente
alcançar o teto
e sentir o vento
soprando
na quina do mundo
lugar especial
para enxergar cada parte
o raso, o profundo
que vale a pena
talvez seja em 2022
te peço, te testo
mas desconfio
a escalada não foi
antes
talvez não seja agora
porque bonita, pesada
e sempre por um triz
ela dura
que chance
a vida inteira

alguém em comunhão com os demais

Já nos primeiros cursos livres que dei, anos atrás, colocava esse trabalho do Basinski sobre 11 de setembro. Ficávamos quietos, acompanhando o loop da fumaça, em silêncio. Quando eu parava o vídeo para comentar, encontrava todo mundo comovido.

Fazer qualquer coisa que possa querer se relacionar com arte, pra mim, passa por isso: pelo encontro inexplicável com a sensibilidade de ser alguém em comunhão com os demais. Curto e rápido. Mas pra sempre.