we can get back to poetry

Ontem e antes de ontem, no Coletivo Digital, aqui em São Paulo, aconteceu o Ampliterra 3, mostra de performances curada por Vanderlei Lucentini e Artur Matuck, como encerramento da disciplina Arte Performance no Campo Expandido, do programa de pós-graduação em Estética e História da Arte, da USP.

Saído de onde eu saio, seja do terreno da publicidade, ou do mundo acadêmico, ou mesmo da literatura, é inevitável ter, num primeiro momento, alguma dificuldade em contornar a testa arregalada que costuma acompanhar o "what's the point of it?". Acontece que, como todo tropeço que a vida tem, que são vários, o sentido do tombo existe na comparação com todos os outros sentidos, os outros tombos, sempre provisórios, arbitrários, até não levantar mais. Então, o que o "a" tem de "a", o que o "c" não tem de "d"? 

Sacar que o homem é uma fábrica de ficção é admitir o óbvio, mesmo tão disfarçado, recomendação desse jeito que escolhemos para viver. Escolha não tão óbvia.

A resposta, portanto, não está no sentido que isso tem; inversamente, o mundo, absurdo em tudo o que ele é, ou poderia ser, responde arregaçando as mangas, mostrando os braços; subindo a saia e revelando as canelas; deixando escapar um sorriso na solenidade de uma reunião familiar. Quer dizer: a performance ganha sentido na medida em que questiona os sentidos que cultivamos, diariamente, nas coisas brutas que, per se, não significam nada. 

Já escolheu o que vai fazer quando crescer?

Demora para entender, porque o jogo dos sentidos depende de experiências prévias consentidas, forçosamente consensuais, que você pode simplesmente querer fingir ser, porque, no enredo da ficção maior - a vida -, só entendemos o mundo na base do faz de conta. Faz de conta que o dinheiro significa alguma coisa. Tenho um bolinho de dez notas, vou comprar seu Playmobil que custa menos notas.

Na vida real, o Playmobil era muito caro. Na vida real, vou ser Jean Cocteau.

No vídeo que abriu minha apresentação, Jean Cocteau se dirige ao ano 2000. Sentado numa escrivaninha, dirige à câmera as preocupações que tem com relação a nós, nosotros, aprendizes de robôs, ainda tristes e melancólicos. Em dois mil e dezessete.

Picasso disse: "Leva muito tempo para grow young."

Com o Ampliterra 3, deu tempo de ser artista ainda nessa vida. Demorou para decifrar, de outro jeito, o valor de terminar sendo jovem, sendo velho a vida toda. 

Roberto passou quatro horas levantando quatro paredes ao seu redor. O que são 4 horas, quando o risco maior é ser a vida inteira? Mas o muro protege no mais das vezes. A gente da gente. Das pessoas que não são da gente, das pessoas que não são gente. Essas mesmas pessoas que deixaram o cronômetro rodar antes de salvar nossa última chance, no looping dramatizado por Joana e quatro convidados, que discutiam alternativas para o homem (ser humano, leia o "ser" como verbo), armando um castelo de papelão incapaz de parar em pé.

"O que você faria se, esta noite, fosse sua última chance de fazer alguma coisa pela humanidade?"

Não fizemos nada. E a humanidade não acabou, ainda, acabando(-se), agora.

Patrick, Matuck e Ricardo manufaturaram momentos tocantes para falar de migração. Migranto chegou comoventemente, descendo as escadas que davam no quintal, sozinho e triste, buscando uma conversa, que, no monólogo da criatura, estranha e estrangeira, não aconteceu. Ficamos todos olhando, encarando a desesperança de alguém que, como tantos outros, aterrissam em São Paulo, e em outras cidades com ou sem nome de santo, para a exclusão. Exclusão que ficou sufocante na dramatização de Patrick, que serviu à roda, majoritariamente branca, num bairro gourmet, o gostinho de quem, negro, precisa implorar para comer. 

Anne em seu depoimento: ao caminhar pela Francisco Matarazzo com um namorado, branco e mais jovem, foi lembrada de que prostituição, no país de pobres condenados por serem pretos, é crime previsto na constituição. 

Precisa de mais motivo para intervenção alienígena? Dimantas tem estudado e apresentado o caso, em conferência bilíngue.

Numa mesa que poderia ser de bar, Marina atendeu curiosos, surpreendidos com a oferta de compra de um dia de trabalho. Entre a clínica, o boletim de ocorrência e o confessionário, propôs um contrato visual indecente, porque exigia a troca de um dia de produção por uma jornada de comunhão. E quem acredita. 

Nadya, lá de fora, tentou orquestrar outro tipo de conexão. Tentacular. Mas acontece que o espectador que despenca na performance-ficção chega da ficção-real - nem sempre tem como negociar a magia do cotidiano por um jogo menos utilitário e brutal. Por isso, talvez, os tentáculos irradiados da cabeça medusiana foram puxados e tensionados - é peçonhenta -, quase nada de chance para o cuidado, o carinho ou a delicadeza.

Natalie pintou o palco de vermelho, friccionando a idea do algodão (aprendemos, com ele, uma pureza que está pra lá dessa dimensão) com os espinhos de um arame farpado trançado entre as colunas do espaço. A trilha multiplicando a expectativa, vai que alguém precise acudir, menina, isso é só uma brincadeira, garota, pra que querer sangrar?

Mr. Perseguim mostrou que a fissura do pacto ficcional também pode ser geracional. Ideia sublinhada pelo delay da captação e transmissão simultâneas que, inteligentemente, poluíram o espaço com ecos e imagens espectrais. Cada tempo tem seus mitos, seus lugares e suas ilusões. Na jornada do herói esquizofrênico, Perseguim foi vô e neto, num acerto de contas que precisou de uma dose de pinga, porque a vida, na vida ou na ficção, quase sempre acaba no vermelho.

E qual é o ponto disso tudo?

We can go back to poetry, muchachada. À base do verso, talvez a gente faça valer nossa última ficção. 

Não foi tudo que aconteceu. Mas foi o que eu tive a sorte de ver.