De repente somos tomados de assalto
A vida como um gerúndio e vários particípios...
Por Krishnamurti Góes dos Anjos*
É como define a existência o personagem central do conto “Fernando e o particípio”, do novo livro de Rodrigo Maceira. A obra se chama “Até de repente” e reúne 7 contos e um sumário das músicas de uma fita K7 “Só sucessos” do grupo A-HA, banda musical que obteve grande popularidade nos anos 80.
Empolgamo-nos com a levada do A-HA, e experimentemos ler esta resenha ao som de uma das faixas. A música “Take on me” cujo link no youtube é:
Maceira é um autor que, julgando a farta referência musical presente em seus contos, tem mesmo “uma relação desmedida com os CD´s.
Mas expliquemos melhor a comparação que o personagem faz com o gerúndio no sentido de que essa forma verbal indica uma ação contínua que está, esteve ou estará em andamento, ou seja, um processo verbal não finalizado. O particípio expressando uma ação concluída, terminada. Com efeito, ciclos da vida que se interpenetram como nos diz a narrativa: “Quieto, Fernando alimentava a mania boba de classificar o mundo em gerúndio e particípio. O que vinha antes? O ovo ou a galinha? Todo gerúndio, acreditava, desembocava num particípio – mas o particípio era só um degrau na escalada de uma existência em andamento. A vida era um gerúndio com vários particípios”. (p.101).
Paulo Scott comenta com muito acerto, na orelha da obra, que Rodrigo Maceira tem a capacidade de fazer o leitor “imergir sem esforço na linguagem de muitas nuances, nas entrelinhas, na autopoiese do que está sendo contado, nas camadas ocultas (sempre as mais relevantes)”. Autopoiese (do grego auto, próprio, e poiesis – criação) é um termo que designa a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. Segundo essa teoria, um ser vivo é um sistema autopoiético caracterizado como uma rede de produções (processos) em que suas menores partes produzidas geram com suas interações a mesma rede de moléculas (partes) que as produziu. A conservação da autopoeise e da adaptação de um ser vivo ao seu meio são condições sistêmicas para a vida. Portanto, um sistema vivo, como sistema autônomo que está constantemente se autoproduzindo, autorregulando, e sempre mantendo interações com o meio.
Daí as referências culturais (sobretudo as musicais), que perpassam toda a obra e vão se entrelaçando por um pormenor, um detalhe, de uma forma tal que terminam por compor um denso painel da formação humana como ela se dá e se problematiza ao longo do tempo, vista pelo ângulo do sentimento e das perdas que vão ocorrendo. O narrador de “Manolo and the punks” sintetiza bem esse enfoque: “A noção de uma cultura pop palimpsestada (palimpsesto - texto que existe sob outro texto), com diversas camadas de autorreferência, ajudava a explicar a relação paradoxal, de atração e repulsa, que ele mesmo sentia diante de fenômenos como o punk e os quadrinhos. Era tudo incrível e rebelde, mas era tudo pastiche e integrado demais. Aquelas expressões eram denúncia e adesão ao mesmo tempo, a via de acesso rasa para, no século XXI, as mesmas questões profundas que atrapalharam o sono do homem de Cro-magnon”. (p.120).
Assim são personagens de Rodrigo Maceira – quase todas jovens flagradas em seus momentos de busca e perquirição. De encontrar o sentido das próprias vidas. Vejam a exemplar definição de existencialidade no trecho: “Estávamos todos ali, todos eles, todos nós, sinceramente tocados pela idéia de que muita coisa na gente repete sonhos que nos inauguraram, antes sequer de a gente ser, antes de os anos, as décadas e os séculos espelharem as saudades que a gente vai produzir”. (p. 48). Assim nosso caminhar por gerações e gerações... E por falar em saudade, a geração que hoje anda na casa dos cinqüenta, deve lembrar-se da música do A-HA, de que falamos, vale a pena escutar e lembrar:
https://youtu.be/djV11Xbc914
Ouvi-la nos fará entender melhor a frase solitária do conto Rebento: “You’ll end up crying with your mother’s eyes”. Em tradução livre: Você vai acabar chorando com olhos de sua mãe.
Livro: “Até de repente” – Contos - de Rodrigo Maceira.
Editora Oito e meio, Rio de janeiro, 2016, 208p.
(*) Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos eDoze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.
em voz alta
Uma vez, na aula de redação do colégio, a professora escolheu um texto meu para ler em voz alta. Conforme ela andava com a história, e esboçava um ranger de dentes aqui e um peito estufado ali, eu percebia que, de fato, havia se envolvido na trama e migrara para experimentar, ao lado dos personagens, o que a narrativa entrelaçava. Foi bom demais ouvir aquilo, sentir aquilo e entender que escrever, e ler também, era por e para aquilo.
Mais tarde, numa palestra com o Skármeta, o chileno encerrou perguntando se havia alguém, entre os alunos, com planos de se tornar escritor. Fiquei quieto e tímido, porque não sabia o que era escolher ser escritor. Para mim, escrever era, e continua sendo, escrever, sentir essa compulsão por tentar fazer caber na palavra tudo o que fica sem entendimento fora dela. Quando menos esperava, a professora, a mesma que lera meu texto para toda a sala, veio até onde eu estava e sugeriu: "Você vai ser escritor, não vai, Rodrigo?".
Lendo essa resenha que o Thiago Sobrinho escreveu para Até de repente, pensei nesse episódio, porque consigo imaginar o Thiago tropeçando ao lado dos personagens do livro. Consigo ouvir ele lendo várias passagens do texto em voz alta.
Sobre "Heroes", Thiago escreveu: "O texto, um dos melhores do livro, tem como chão a amizade de um grupo de jovens que ainda não foram brutalizados pela pedreira que é a vida adulta".
Bingo.
son
Esse quadríptico em vídeo dos argentinos Entre Rios vale cada clique e cada segundo de todas as vezes (porque uma não dá conta) que você usará para sorver a trama.
Precisa seguir por aqui, a partir de um computador (não funciona em telefone).
o corpo educado é o corpo que sente
"Até de repente" por Sérgio Tavares
Sérgio Tavares fez essa leitura generosíssima de Até de repente.
uma resenha para "até de repente"
Sou leitor do Capítulo dois há bastante tempo. Gosto dos textos do blog justamente porque colocam a opinião do autor, separam o que interessa do que não cumpre a promessa, fazendo valer a função da crítica. Por essa razão, foi bom demais ler o texto que o Ricardo publicou sobre Até de repente.
Toda revolução é um lance de dados
may days + klein
Dentre as toneladas de coisas sobre as quais tinha informação nenhuma, descobri, fuçando o Mubi, essa coleção de imagens de maio de 68 capturadas por William Klein. O filme é um dos documentos mais impressionantes que vi sobre esse que foi dos grandes levantes indecifráveis do século XX. A sequência monta um mosaico de posições, motivações, conflitos, estranhamentos, desdobramentos. Tumulto, muita agitação, inquietação, e enorme dificuldade de pescar alguma coerência. Sem tentar explicar muita coisa, Klein liga a câmera e espera a história acontecer - enquanto história e cinema.
Por isso, fui ler mais sobre o fotógrafo e achei esse vídeo aqui. Deve ser óbvio para quem conhece, mas foi interessante saber que, de volta da Segunda Guerra, Klein recebeu uma bolsa para estudar Artes em Paris.
Meia-noite e vinte
Se tive uma certeza lendo Meia-noite e vinte, certamente foi a de que é o melhor livro do Galera. Em suas duzentas páginas, o romance regasta um tempo, uma ideia de futuro, a promessa de que a vida daria certo demais para a muchachada que imaginou os princípios da internet doméstica como a condição perfeita para projetar uma geração que refaria o mundo inteiro - de novo.
Partindo dos relatos de três personagens, reconectados pelo assassinado de um quarto amigo - escritor catapultado por um spamzine literário do final dos anos 1990 -, Galera constrói um texto cheio de lirismo, sem pieguices ou artificialismos na escolha dos verbos, dos tempos, dos adjetivos. A combinação dessas vozes, bem delimitadas, assentadas em pesquisa considerável e diferentes entre si, e costuradas por transpirarem certo deslocamento em comum, é a chave para a gente sacar que nenhum sucesso supera o fracasso de - a toda hora - assistir às coisas morrerem, às expectativas encurtarem, ao nosso terreno sendo ocupado.
É inevitável pensar nos anos do Cardosonline, na euforia em torno daquela gangue, na descoberta de um espaço para ser visto, ouvido, para além do pátio do colégio, da cantina da faculdade, ou do bar da noite estranha. Toda uma geração classe média branca brasileira que se debruçou sobre a conexão discada, querendo encontrar alguém afim do outro lado da linha, sedendo por revelar o tesouro pop inalcançável. Eram horas e horas, madrugada adentro, livre dos algoritmos, imaginando que havia um tempo completamente inédito a ser escrito, um percurso autônomo, feito de relações desimpedidas, sem língua, sem fronteiras.
No romance de Galera, as lembranças de Aurora, Antero e Emiliano impõem um doloroso acerto de contas com o tempo e, parágrafo a parágrafo, terminam por desmontar a utopia toda, então assoberbada pela pouca idade de quem não suspeitava do tamanho do atropelo - web concentrada, web vigiada, web patrocinada, web comercializada, web censurada, web embolhada, web polarizada - que chegaria mais tarde. No fundo, a literatura ensaiada em mailings e blogs não impediu a vida de repetir os mesmos tropeços do tempo do jornal e das páginas do livro. O renascimento do suporte em papel, em grande medida, é sintoma disso.
Quinze anos depois, os depoimentos dos colaboradores do Orangotango - o nome do zine literário que, em Meia-noite e vinte, circulava por e-mail no começo dos anos 2000 - revelam trajetórias pouco criativas, tristemente previsíveis. O amigo que se rendeu à publicidade - e cultivou o reino Umbigo na barriga -; a amiga que tentou a sorte (o destino) na vida acadêmica, esquecendo que poucos lugares são tão carta-marcada e cifrados quanto a universidade pública; e o jornalista que se apaixonou pelo jovem escritor assassinado e que tem, agora, a oportunidade de fazer esse amor dar certo numa biografia póstuma do Duque, o amigo morto, encomendada por um editor macaco velho
São depoimentos atravessados por chantagens e frustrações, traições e melancolia, ambições, pânico e desesperança. Depoimentos profundamente carregados de saudade, de imagens do tempo em que a molecada, ainda aos vinte anos, traçava rotas fantásticas na web, convencida de que a amizade, a criatividade, a anarquia, a putaria e a magia seriam possíveis, como nunca tinham sido antes, para sempre e, irreversivelmente, para a humanidade inteira.
Lindo livro.
Playlist do Irvine Welsh
Diz que Mr. Welsh cria playlists para a construção de cada um dos seus personagens. Nesse programa da BBC, o autor apresenta algumas faixas.