Um trechinho

Logo menos, vou escrever sobre O amor dos homens avulsos, novo romance do Victor Heringer. Preciso conseguir uma horinha para orquestrar bem as palavras que podem ajudar a contar - sensorialmente - o livro. Enquanto isso, trilho atrapalhado a faina de todo o dia. Mas colo um trecho do Heringer aqui, antes que eu arraste o .txt que fiz dele para a lixeira. 

Meu ódio por ele tinha desaparecido. Eu acho que o ódio está no mundo em consistência de nuvem, uma coisa que fica ao alcance de quem quiser pegar, deixar fermentar e moldar como quiser. É um apêndice da cabeça. Não tem dono nem mira certa, não dá pra prever nem controlar muito bem, é uma gripe bubônica se espalhando, uma peçonha desembestada, lava de vulcão, onda tsunami, não sei a comparação certa. Depois da bengalada que dei nele, meu ódio perdeu o nome e o formato de Cosmim. Aí, de um golpe, comecei a amá-lo.
— Victor Heringer, 2016.

tudo, tudo, tudo, tudo devia ter me deixado feliz

Sigo na cola de Karl Ove Knausgård, mais lento, porque estou precisando intercalar com dezenas de outras leituras. De novo, acontece de o leitor cruzar com passagens imensamente delicadas, por baixo de um manuseio de linguagem que, às vezes, pode parecer seco. No caso desse trecho abaixo, vi e senti palavras parecidas em relação a tanta gente, a tanta vida. 

Soltei um suspiro. A iluminação elétrica no teto, que se espalhava por cima de todo o saguão, e que aqui e acolá projetava reflexos contra uma janela, uma superfície metálica, uma laje de mármore ou uma xícara de café, devia ser o bastante para me deixar feliz por estar aqui. As centenas de pessoas que se moviam como sombras de um lado para outro no saguão deviam ser o bastante para me deixar feliz. Tonje, com quem eu tinha passado os últimos oito anos, compartilhar a vida com ela, com a pessoa maravilhosa que era, devia ter me deixado feliz. Encontrar o meu irmão Yngve e os filhos dele devia ter me deixado feliz. Toda a música que existia, toda a literatura que existia, toda a arte que existia, tudo, tudo, tudo, tudo devia ter me deixado feliz. Mas em relação a toda a beleza do mundo, uma beleza quase esmagadora, eu era indiferente. Simplesmente era assim, e assim tinha sido por muito tempo e eu não aguentava mais, e portanto tinha decidido tomar uma providência. Eu queria voltar a ser feliz. Parece idiota, eu não podia dizer uma coisa dessas para ninguém, mas era assim.
— "Um outro amor", p.152-53

Eu cortava cabelo no Stylus

Para a aula sobre estilo, no curso de (re)escrita (re)criativa, no CCSP, discutimos um pouco a noção "verticalizada" de estilo, do Barthes, e usamos o clássico Exercícios de estilo, do Queneau, justamente para pensar se podemos ou não escrever para além de "condicionantes inatos". Foi toda uma boa conversa, mas foram ainda melhores os textos que alguns dos participantes desenvolveram a partir da proposta de um hipotético 100° exercício. Renata e Beatriz reescreveram o episódio do ônibus, narrado 99 vezes - cada uma em um estilo - no original de Queneau, ao modo "erótico". Já Marcelo organizou seu processo de criação à maneira dadá. 

Renata Brabo

Renata Brabo

Beatriz Prieto

Beatriz Prieto

Lá esperança subia de tamancas no paratodos transportável S, lotado. Cary Grant, o malandro nordestino afetado, em torno das 12:23, um rapazote de 129 anos, um babaca com um pescoção depenado e sem recheio, de repente, porque Pituca pisoteava e é pisado por B, interpelou seu vizinho, um velho imbecil ao lado. Incapaz de levar a rixa com a ralé, logo se esgueirou e empreendeu o preenchimento de um lugar disponível, foi-se.
Horas, esse revi. O conjunto dos pedestres presentes conversando animadamente em plena estação mal-acabada. O professor aconselhava a diminuir um botão do seu sobretudo, é!! no dele!!
— Marcelo Fernando da Silva

Crazy emotions

Everyone has been seized by an indefinable intoxication. The small cabaret is about to come apart at the seams and is going to be a playground for crazy emotions.
— Ball, 1916 - http://www.bbc.com/culture/story/20160719-cabaret-voltaire-a-night-out-at-historys-wildest-nightclub

Por mais que a gente se esforce para imaginar o que seria um cabaré, como o Voltaire, num país europeu resguardado da Primeira Guerra, não é fácil alcançar o que podem ter significado as sessões, as bebedeiras, as apresentações, as criações, as pegações, as experimentações e todas as locuritas dos dadaístas de Zurique. 

Tento relacionar com os movimentos e produções contemporâneos meus, pensar no tipo de bar que poderia receber uma revolução cultural, no tipo de artista que bagunçou o padrão de ideias desse trânsito século XX-XI, e não é fácil apostar em nada em especial. Tem um palpite aqui, outro ali, mas identificar alguma força criativa capaz de reconfigurar o comportamento de quem tem necessidade de criar, quando a lógica ainda pede para produzir, é pouca brincadeira.