A literatura é um acerto de contas com o que acaba

Com tudo o que faz da gente o que a gente imagina ser.

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Sempre sento para escrever, sobre um episódio inspirado no que eu quis que fosse, do jeito que eu quis, ou em alguma tentativa pura de invenção, impossível mas heroica, e travo uma batalha, fatalmente fracassada, contra mim mesmo, contra a incapacidade que tenho, que temos, de ser pra sempre e, assim, dispensar artifícios que esperam prolongar o que tem fim.

Penso num casal deixando uma mesa, o bar em Quito; têm jeito e cara de estrangeiros, na Plaza Foch, querendo achar a América Latina cosmopolita e tramar um futuro onde o novo nem sempre é desenvolvido, e as margens do tempo oscilam como a auréola ao redor dos luminosos que vendem bebida, hospedagem e estações de internet. Ela acende um cigarro, não sabe se pode; faz diferença nenhuma, porque ela não fuma. Ele pensa na cantada que levou, de um homem, e de manhã, no ponto onde esperava o tour que sairia para o topo de um vulcão. Resvalam as mãos umas nas outras, apressam o passo até o espaço das mesas recuadas; divertem-se com o balanço que rege os corpos dos outros, corpos cheios do mesmo sotaque que perceberam, então, na voz e nos tons de quem tempera bem o peixe e recomenda literatura jovem boliviana.

Estão achando graça em dançar, colar o rosto e respirar a respiração da boca de cada um; um vai e um vem, uma régua que nivela o salão, subindo todos para uma mesma altura, onde o céu conta as pessoas como peças de uma constelação. E, sendo isso, só isso, é tão isso que ameaçam esquecer a crueza do dia seguinte e das manhãs por vir, dias depois, na rotina de trabalho e na comida por quilo. Ouvindo o pop em francês, quadril pra frente e pra trás; foi na década de 80, assim, mas, sem saberem, era de novo, com eles, pela primeira vez, numa noite que não volta, não voltaria jamais.


"Deus vai te derrubar"

"Deus vai te derrubar" é um conto de Até de repente. Pra minha sorte, quando leu o texto, o Lucas Hirai teve vontade de clicar uma série a partir dali. Vou reunir o resultado no blog, com comentários meus, apontando rastros que, na minha imaginação, aproximam um do outro. 

Alguns posts repetem o que escrevi no Instagram. Outros acrescentam pontos, no melhor estilo app sem fio. 

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Em "Deus vai te derrubar", Estela, ajudada por sua enfermeira, faz um trabalho de fotomontagem motivado pelo Poetismo, "movimento" da vanguarda theca. Usa uma foto sua como barco para uma porção de fotos com Estelas menores. Um medo enorme de morrer afogada antes de alcançar a praia.

  

tudo, tudo, tudo, tudo devia ter me deixado feliz

Sigo na cola de Karl Ove Knausgård, mais lento, porque estou precisando intercalar com dezenas de outras leituras. De novo, acontece de o leitor cruzar com passagens imensamente delicadas, por baixo de um manuseio de linguagem que, às vezes, pode parecer seco. No caso desse trecho abaixo, vi e senti palavras parecidas em relação a tanta gente, a tanta vida. 

Soltei um suspiro. A iluminação elétrica no teto, que se espalhava por cima de todo o saguão, e que aqui e acolá projetava reflexos contra uma janela, uma superfície metálica, uma laje de mármore ou uma xícara de café, devia ser o bastante para me deixar feliz por estar aqui. As centenas de pessoas que se moviam como sombras de um lado para outro no saguão deviam ser o bastante para me deixar feliz. Tonje, com quem eu tinha passado os últimos oito anos, compartilhar a vida com ela, com a pessoa maravilhosa que era, devia ter me deixado feliz. Encontrar o meu irmão Yngve e os filhos dele devia ter me deixado feliz. Toda a música que existia, toda a literatura que existia, toda a arte que existia, tudo, tudo, tudo, tudo devia ter me deixado feliz. Mas em relação a toda a beleza do mundo, uma beleza quase esmagadora, eu era indiferente. Simplesmente era assim, e assim tinha sido por muito tempo e eu não aguentava mais, e portanto tinha decidido tomar uma providência. Eu queria voltar a ser feliz. Parece idiota, eu não podia dizer uma coisa dessas para ninguém, mas era assim.
— "Um outro amor", p.152-53

o que é literatura?

Bakhtin não se ateve à crítica da definição formalista da literatura (para substituí-la por outra); não, ele simplesmente renunciou a procurar a especificidade literária. Não que essa tarefa perca todo sentido a seus olhos; mas esse sentido só existe em relação a uma história particular (da literatura ou da crítica) e não merece a posição central que lhe atribuíram. O que lhe parece agora muito mais importante são todos os laços que se tecem entre a literatura e a cultura, enquanto “unidade diferenciada” dos discursos de uma época. Daí seu interesse pelos “gêneros primários”, isto é, as formas de conversação, de discurso público, de trocas mais ou menos regulamentadas. Mais do que “construção” ou “arquitetônica” a obra é acima de tudo heterologia, pluralidade de vozes, reminiscência e antecipação dos discursos passados e futuros; cruzamento e ponto de encontros; ela perde de repente sua posição privilegiada.
— Todorov